A Bela da Tarde
- Fernando Carlos
- 25 de set. de 2019
- 8 min de leitura

De Joseph Kessel, judeu na Lituiânia seu pai médico viajava muito e, portanto ele nasceu na Argentina, mas passou os primeiros anos de vida na Rússia, depois se mudou para França e lá permaneceu. Conhecido pela obra Bela do dia - no original Belle de Jour (1928) essa obra, aqui no Brasil, ficou conhecida como A Bela da Tarde devido à adaptação para o cinema por Luis Buñel e o filme superou o livro em importãncia, pois vivíamos o movimento surrealista nas artes e nas ciências, as descobertas e divulgação do inconsciente por Freud e o choque que as pinturas de Salvador Dali causaram no mundo inteiro, misturando o real com o Surreal, sonho e realidade.
Buñel só fez obras complexas e de difícil decifração, um de seus filmes, o cão andaluz ele mesmo havia declarando que qualquer cena que faria sentido seria descartado, mas A Bela da Tarde, seu filme mais famoso e com mais ingredientes para debate e compreensão é realmente o mais famoso e importante, tanto para a história do cinema, com o para a literatura.

O livro e o roteiro adaptado têm o mesmo tema e história. Lembramos que a obra foi escrita na França em 1928, exatamente no meio das inter-guerras mundiais, o mundo polarizado, sendo a França e Inglaterra com seu liberalismo e Alemanha e Itália com seu ultra nacionalismo. Portanto a obra é de fundo burguês e a intenção do autor foi tratar do modo de vida burguês e o inconsciente de uma burguesa e fui essa obra justamente, uma das obras mais complexas que motivou Buñuel, usando uma estética interessantíssima para dissecar e criticar a instituição do casamento, da monotonia da rotina burguesa, de suas relações conjugais e submerge nas profundezas desconhecidas do desejo, por meio de uma aristocrática e aparentemente frígida dona de casa burguesa , interpretada pela belíssima Catherine Deneuve, que nessa época apresentava uma beleza exuberante.
Na história temos a personagem Severine. Já o nome nos remete a obra “A Venus das Peles de Leopoldo Von Sacher-Masoch” cujo personagem principal se chama Severin. Ele é um nobre rico e poderoso que deseja ser escravo real de uma mulher cruel e despótica, portanto isso já nos mostra tratar de uma obra sadomasoquista e é de fato. Casada com um médico jovem, atraente e próspero financeiramente, bem sucedido que a trata com muito carinho. Em todos os momentos ele demonstra amor e conformidade dos desejos de Séverine, da mesma forma, jovem muito bonita e realizada no casamento burguês com bom relacionamento social, suas roupas são feitas pelo famoso estilista Yves Sant Loren, mas ela é fria sexualmente, dormem em camas separadas e quando ela não está a vontade de realizar sexo, seu compressivo marido para qualquer tentativa e volta a dormir em sua cama sem forçar nada.

Ela tem desejos incompreensivos para alguém na sua posição, tem sonhos eróticos em que ela é surrada com chicotes realizado por cocheiros a mando do marido, violentada sexualmente (estupro) e até humilhada dentro de um chiqueiro onde ela recebe passivamente lama na cara jogada por seu marido e amigo, enfim, ela tem esses sonhos e imagina que seu marido está paralítico numa cadeira de rodas e cego. Na continuação da história 39 anos depois, (Sempre Bela, 2006), é revelado que ele realmente ficou mudo e paraplégico
Uma mulher tão espetacular, que poderia ter qualquer homem a seus pés, inclusive uma dos melhores amigos de seu marido a adora e a venera, ele se sente seduzido por Séverine enquanto pensa que ela é inocente. Porém, foi ele quem passou o endereço do bordel para a mesma. Fica a dúvida: até que ponto, ele não previu na protagonista o seu potencial para o sexo brutal? Ela decide se prostituir e procura uma casa tipo bordem no período da tarde, em que ela não tem nada que fazer e passa a ser a prostituta mais cobiçada da casa e se compraz sexualmente com homens rudes e desconhecidos nesse bordel que frequenta durante as tardes.

Ela tem certeza do seu amor pelo marido, mas não consegue entregar-se sexualmente a ele e quanto mais se relaciona com outros homens, que é o oposto dele, homens feios, pobres, sujos, criminosos, esquisitos, gordos, enfim, a escória da sociedade mais sente amá-lo. A personagem dissocia completamente sexo de amor e seus personagens caminham sempre na direção da transgressão a fim de criticar a rigidez e o automatismo das instituições sociais. Vai culminar na paixão pelo pior dos fregueses, o mais asqueroso, o mais sádico, que a todo o momento a pega pela força, ameaça a chicoteá-la com seu cinto, ele é um marginal procurado, um criminoso. Não há forma de compreender o que levou Séverine a tomar esse caminho e pior, se apaixonar pelo que há de mais abominável nessa sociedade nessa época a não ser os desejo trazidos a luz da ciência por Freud, chamado pejorativamente de perversão ou um pensamento filosófico de George Bataille.

Bataille é um filósofo contemporâneo aos dois autores, Buñel e Kessel. Considerado como um dos escritores mais polêmicos e originais do século XX, transitava entre os boêmios na cena intelectual parisiense, mas se assumia marxista e colocava muito desse pensamento nas suas obras e teve influência, além de Marx, de Freud e Nietzsche e sua obra foi marcada pela estética do surrealismo, mas teve o Marques de Sade como referencia e influência em suas obras eróticas, onde encontramos seres angustiados e torturados por conflitos íntimos, que Bataille utiliza para nos mostrar a perda do indivíduo em torno de suas paixões até a morte. para Bataille “a literatura é comunicação, impõe uma lealdade, uma moral rigorosa. Não é inocente. A literatura é o essencial ou não é nada. O mal - uma forma penetrante do Mal - de que ela é a expressão tem para nós, creio eu, o valor soberano".

Sobre o erotismo, ele se baseia no livro de Freud “O Mal estar da Civilização (1929)” que em síntese mostra que o indivíduo é um ser animal, no sentido evolucionista, quer dizer, fomos um animal um dia e passamos por rituais e adaptações, limitações que nos tornaram seres sociais e necessários para se conviver dentro de uma sociedade civilizada, represando esse animal ancestral, mas deixando um mal estar em ter que suprimir muitos desejos desse ancestral em benefício de sermos civilizados. Bataille continua essa linha de estudos, o que está sempre em questão é substituir o isolamento do ser, a sua descontinuidade, por um sentimento de continuidade profunda. Bataille nos leva a descobrir que "entre todos os problemas, o erotismo é o mais misterioso, o mais geral, o mais a distância".

Mostrando os efeitos de transgredir as interdições impostas milenariamente por estes elementos desordenadores, Bataille dá ao erotismo e à violência uma dimensão religiosa, onde explora os meios para se atingir uma experiência mística "sem Deus": "um homem que ignora o erotismo é tão estranho quanto um homem sem experiência interior". Ele foi católico, mas logo abandonou sua crença e fé. Em suma, ele diz que o homem é ainda e mantém ainda desejos do nosso ancestral animal, mas para que a beleza humana (o anti-aninal) se afaste o máximo possível das formas animais, há uma necessidade do afastamento das formas animais para que a beleza humana exista. O fato é que esse animal ancestral não foi extinto dentro de nós, ele existe e ele quer viver e manter a sua sobrevivência e continuidade através da procriação, isto é, ele deseja sexo.

Aqui temos que explicar que, para Bataille, nós civilizados, escondemos o sexo e tratamos as partes pudicas como algo proibido, feio e secreto, algo que deve ser escondido por ser algo feio, ou dito feio, o que fazemos é colocar o que está da cintura para cima como algo para ser adorado, admirado, exaltado, por isso o cabelo tem destaque na história da Bela da tarde, quando ela está com amigos e com o marido, enfim, na sociedade, os cabelos sempre estão presos ou enfeitados por chapel. e quando ela está no bordel seus cabelos soltos desalinhados, jogados como um animal. Assim com seu corpo, sempre com roupas caríssimas e de fino trato na sociedade, mas no bordem, apenas um roupão ou lingeris ou nada. O genital representa o animal que um dia nós fomos e ainda permanecemos sendo e eles só se tornam belos na hora do sexo carnal. Nessa hora nós temos o encontro do humano que somos, o belo que nos sentimos com as partes ocultas feiosas como animais, mas nesse momento elas passam a se complementar, a humanidade mais sublime com a animalidade mais abjeta para que o desejo aconteça. Séverine representa o que se pode definir o máximo da beleza que se supõe para uma mulher burguesa daquela época, e eu pessoalmente digo para esse época também.

Pela teoria de Bataille o que ela mostra como belo é um lado apenas, sendo que seus genitais, por representar o lado animal, seriam feiosos e eles se tornam belos e desejáveis porque ela transgride essas leis da estética. O que nesse obra temos diferente dos pensamentos de Bataille é que Séverine transgride outras leis, a lei do casamento, da moral, do amor, uma transgressão radical, o que diferencia Séverine dos demais está na natureza de seus desejos, na radicalidade do seu desejo.

Ainda dentro do pensamento de Batailler, a obra nos apresenta outros personagens, uns sujos, violentos, repulsivos e enigmáticos, mas também homens poderosos e intelectuais, respeitado dentro da sociedade, como um professor muito bem apessoado que recusa ficar com a Bela da Tarde Séverine, preferindo uma mais experiente e sádica, que o humilha e pisa em seu rosto. Para Bataille, esse homem tão efetivo, tão superior, na hora do coito, muitas vezes ele terá uma postura mais passiva, subserviente, muitas vezes humilhante. No mundo da erótica se fala outro idioma, palavrões, xingamentos são implorados, são requisitados e declamados prazerozamento nos ouvidos famintos do parceiro.

Na visão de Freud, a transgressão, a subversão só existe porque temos a interdição. Aqui entre em obras complexas sobre o resquício do primeiro amor da criança pela mãe e a interdição do progresso desse amor como algo pecaminoso e abominável, mas que esse amor incestuoso fica adormecido e retorna em pessoas que não conseguiram superar o complexo de Édipo na infância e no ato sexual, pela transgressão legitima os códigos sociais, esses códigos sociais que serão fantasiados por alguns minutos no ato sexual, onde teremos uma desconstrução dos valores sociais e das estruturas do poder. A ordem do poder, da higiene e da assepsia cai por terra.

Séverine vai se apaixonar perdidamente pelo cliente mais asqueroso, mais violento, sendo que é casada com um homem que a ama de fato, gentil, prudente, médico promissor e respeitador, até submisso a ela e seus caprichos, que não deixa faltar nada para seu conforte, status e prazer. Ela é uma dona de casa que tem tudo a seus pés, mas prefere o marginal, o risco de vida, o bandido, o proibido, enfim, o que se aproxima mais da transgressão e do ser animalizado.
A crítica ao consumo desenfreado, os vestidos de luxo, os encontros em restaurante mostra o descabimento de uma sociedade consumista que despreza o que é mais básico, o amor e sexo. A morte como destino da sociedade de consumo é essencial à doutrina de filósofos que norteiam a obra de Bataille como Deleuze e Guatarri, colocando o mundo como espaço de várias alternativas possíveis à lógica do mercado em detrimento as pulsões e desejos sexuais levando a reconhecer que esses excessos desemboca no desejo de transgredir, tendo a psicanálise como uma das formas de culturalismo que não cessa de mostrar-se como alternativa original e criativa de compreender nosso mundo.
Filme

A Bela da tarde (1967). Direção de Luis Buñel. Sinópse: Séverine (Catherine Deneuve) é uma jovem rica e bonita, porém infeliz. Ela ama seu marido (Jean Sorel), um médico, mas eles não são tão íntimos quanto ela deseja. Ela procura um discreto bordel, comandado pela Madame Anais (Geniviève Page), para realizar suas fantasias eróticas e e conseguir o prazer que seu marido não consegue lhe dar. Ela trabalha como prostituta à tarde e à noite retoma a vida de casada, mas um cliente abusivo promete complicar a situação.
Ganhou o Leão de ouro como melhor diretor no Festival de Veneza.
“O filme foi feito nos anos de 1960, às portas da revolução sexual e da segunda onda do feminismo, por isso uma personagem tal qual Séverine tinha mais poder do que somos capazes de figurar hoje em dia. Ela tomou sua sexualidade nas mãos, seus gostos peculiares e foi resolvê-los por conta própria” (cineweb, por Alysson Oliveira).

Buñuel foi um iconoclasta, alguém que utilizou o surrealismo como meio e não como fim. O surrealismo foi a sua ferramenta para criticar e desnudar uma sociedade cruel, injusta, hipócrita, que nega o próprio desejo e aquilo que não pode entender. Uma sociedade que automatiza a fé e que mecaniza o trabalho. Nota 10.
A bela da tarde é um clássico do cinema francês e um dos melhores filmes realizados pelo aclamado cineasta espanhol Luis Buñuel e outro destaque é a excelente atuação da atriz francesa Catherine Deneuve.