Fogo Morto
- Fernando Carlos
- 22 de fev. de 2019
- 9 min de leitura

José Lins de Rego.
Fogo morto (1943) é considerado a obra-prima mais madura de Lins do Rego, uma síntese de uma série de livros que trata do ciclo cana de açúcar e o último romance da fase regional neorrealista que está inserido na segunda fase do modernismo no Brasil denominada de geração de 30, pois teve início a partir de 1930, embora a obra de José Américo de Almeida “A Bagaceira” também está inserida nessa geração e foi publicada em 1928 e também fala do ciclo da cana e dos problemas regionais do nordeste da época em Alagoas.
Fogo Morto está dividido em três partes, cada uma focada em um dos três protagonistas, onde no final vão se entrecruzar e concluir a mensagem que o autor desejava encerrado com Usina, que iria substituir o engenho de cana de açúcar.

1ª parte: O mestre José Amaro.
O personagem José Amaro é um morador do engenho Santa Fé, um seleiro (artesão que faz selas para cavalos), numa situação de fim de carreira. Seu pai era um seleiro famosos, fala-se que ele fez a cela para o Imperador Dom Pedro II, portanto com muito prestígio, mas Amaro já está velho, morando a margem do engenho, tem uma filha com problemas mentais e mora com a esposa. Para piorar sua situação, existe um boato que ele vira lobisomem, em razão de sua personalidade amarga e frustrada e gostava de andar à noite porque o silêncio e a solidão lhe traziam um pouco de paz e alívio.
No que consiste a sua história, o dono do engenho deu um ultimato para que ele deixe suas terras. Ele não vê alternativa de outra moradia, sendo que elra conhecido por todos, embora as encomendas para fazer novas selas já não eram lá essas coisas, ainda o problema da filha, que não via pretendentes para que ela se cassasse. O povo inventava que o seleiro que saía a noite em busca de sangue.

“Viu a luz da casa das velhas do seu Lucindo como um farol vermelho na luz branca da lua. Aproximou-se mais e ouviu choro de gente. O que seria aquilo? Pensou em entrar no atalho que dava para a casa. E estava pensando em procurar saber o que podia ser aquele choro, quando um canto de reza subiu ao ar. Era quarto de defunto. Entrou no atalho e se foi chegando para a casa que se escondia atrás de um juazeiro enorme. Só podia haver muita gente dentro da casa para dar aquele volume enorme de canto de morte. E quando ele se chegou na janela e botou a cabeça para olhar o povo rezando, um grito estourou como uma bomba.
– É ele, é o lobisomem. Correu gente, mulheres gritaram. – É o mestre José Amaro, gente – falava um homem que estava na porta. – É o mestre José Amaro, povo besta.
Pararam de rezar. Estendida na esteira estava a velha Lucinda amortalhada. Olhavam para ele as mulheres apavoradas. Não pôde ficar por mais tempo ali. O homem que acompanhara as mulheres veio falar com o mestre.
– Estão com medo do senhor. – De mim? – É verdade. Este povo é besta mesmo. (…)

Agora não estava consertando os arreios de um velho doido, não estava fazendo sela para um camumbembe qualquer. Trabalhava para o grupo de Antônio Silvino. Cortava solas para cabras que já sabiam morrer no rifle, para gente que tinha sangue de macho. Não era um pobre seleiro de beira de estrada, era mais um oficial de bagaceira de engenho. (…)
Que fossem para o inferno os grandes da terra. Para ele só havia uma grandeza no mundo, era a grandeza do homem que não temia o governo, do homem que enfrentava quatro estados, que dava dor de cabeça nos chefes de polícia, que matava soldados, que furava cercos, que tinha poder para adivinhar os perigos.
José Amaro representa na obra o marginalizado, o ultrapassado, aquele que não se adaptou a modernidade. O fato de ele morar à margem, é bem isso, um ser bizarro, infeliz no casamento e com um destino para a ruína. O fato da filha estar com problemas mentais e ser solteira e com idade elevada para casar aponta ao problema que passavam as mulheres, praticamente obrigadas as se casar ou não teriam futuro. Na sua sede de vingança e até desespero pela situação de ser despejado, resolveu ajudar Antônio Silvino, líder do cangaço, considerando-o como um herói, símbolo da força e da coragem, qualidades que José Amaro não possuía. Mas aqui o autor mostra o cangaço de forma diferente que no seu primeiro livro “Menino de Engenho.” Lá, era visto até como um herói dos pobres, um Hobin Wood, aqui já faz uma crítica e é mostrando como sanguinário, impiedoso e bandido do sertão

2ª parte: O engenho de seu Lula
Aqui temos a história no presente, com o dono de engenho seu Lula falido, mas o autor usa do flash back para nos contar desde o início da formação do engenho Santa Fé pelo capitão Tomás Cabral de Melo, o fundador. Ele pensou que havia feito um bom casamento de sua única filha Amélia com um homem honrado e nobre, mas após sua morte, mostrou que e seu Lula conduziu o engenho com uma brutalidade que ninguém imaginava e não era muito afeito a conduzir o engenho, mas somente ficar na mordomia de ser herdeiro.

“A carruagem atravessava as várzeas do Santa Fé. Tudo estava coberto de mato. Só um partido de cana, umas três cinquentas, com o verde-escuro da cana bem criada. No mais era a mataria, o tabocal, o mata-pasto, o melão-de–são-caetano se enrascando pelas estacas da beira da estrada. Também não havia ninguém que quisesse plantar as terras do Santa Fé. O coronel Lula não queria lavrador que lhe viesse com exigências descabidas. Ali viera, logo depois de 88, um sujeito de Itambé, e fizera dum partido de cana para mais de duzentos pães. Seu Lula implicara com o lavrador, e no final da safra o homem deixara tudo e ganhara o mundo. A fama da mesquinhez de seu Lula correra pelos quatro cantos. E por isso não aparecia quem lhe quisesse plantar a várzea.

A falta de habilidade de seu Lula para conduzir o engenho é uma das causas da decadência do Santa Fé. Ele tinha a fama de tratar com extrema violência os escravos, que acabam por debandar após a abolição.
Sem se entender com lavradores, seu Lula vai afundando cada vez mais o engenho. Após um ataque epilético torna-se um religioso fervoroso. Esta parte da narrativa termina com uma triste constatação: “Acabara-se o Santa Fé”.

Nessa parte é mostrada a brutalidade e bandidagem do cangaço, quando Antònio Silvino invade o engenho em busca de jóias, comida e não encontra nada. Ele quer as chaves do cofre e começa ameaçar a vida de seu Lula, que não reage e ainda tem uma crise epilética na hora. A questão dessa família é semelhante a de seu Amaro, ele mora sozinho com a esposa e sua filha, com idade de se casar, não tem pretendentes, mesmo sendo bem educada, tocar piano, letrada, mas sem futuro e sem continuidade na linha de sucessão familiar, caso ela não de filhos.

Outro ponto importante nessa parte é a questão da libertação dos escravos que ocorreu em 1888. Como Lula era extremamente bruto com seus escravos, ao serem libertados pela lei Áurea, todos foram embora, deixando o engenho as moscas com a falência prevista. Essa é a parte que justifica o nome da obra, pois quando o povo olha para as caldeiras desligadas e a chaminé sem fumaça fala, aqui não há mais produção de açúcar, é Fogo morto.

Quem socorre Lula é seu vizinho da fazenda Santa rosa José Paulino, avô de Carlinhos no primeiro livro de José Lins do Rego “Menino de engenho.” Ele vai ate a fazendo e diz ao cangaceiro que Lula não tem mais nada, que está falido de fato e convida o cangaceiro a comer algo na sua fazenda e deixar essa família em paz.
Da mesma forma, temos a crítica a situação da mulher nessa época que tinha a necessidade de casar e dar filhos e se possível filhos homens. Também a decadência dos engenhos que seriam substituídos por usinas e a problemática da situação escravocrata e o destino dos ex-escravos, que não tinham emprego após a libertação e viviam em uma calamidade humana.

3ª parte: O capitão Vitorino
O capitão Vitorino é o personagem que destoa de tudo que o autor já havia escrcrito. Ele é um personagem quixotesco, andava sobre um burrico e sempre com uma faixa verde amarela no paletó, mas é o que mais se desenvolve no livro, compadre e amigo de Mestre Amaro, passa a ser o personagem central da obra. Luta por seus ideais, sendo sonhador em demasia. Deseja ser um herói, mas para a maior parte da população do Pilar é tido como um louco ou um bobo da corte. A figura do “Papa Rabo”, como era conhecido e onde haviam crianças elas gozavam gritando esse termo e ele xingava com raiva sobre seu burrico, uma cena muito cômica. O autor constitui uma mescla de Dom Quixote e Sancho Pança, de Cervantes.

Para combater o cangaço é enviado uma tropa militar comandada por um tenente autoritário e cheo de razão. Após um incidente com o tenente, o capitão tem o reconhecimento que considera ser digno dele.
“E quando o trem saiu com o velho Vitorino, a estação estava cheia de gente que viera ver a partida do prisioneiro.

Todos se espantavam da coragem, do jeitão atrevido do velho. Era homem que ninguém dava nada por ele e não tinha medo de coisa nenhuma. A velha Adriana voltou para casa mais tranquila. Vira o marido com os parentes ao seu lado. Mas o tenente Maurício ficara na vila como um rei. Delegado e prefeito não valiam nada para ele. (…)
Saíra um artigo no Norte com queixa contra o tenente. O capitão Vitorino Carneiro da Cunha era apontado como um cidadão pacato que levara uma surra da força volante. No outro dia apareceu uma retificação. Era Vitorino que procurara o redator para contar tudo como se passara. Não levara surra nenhuma. Em luta com o tenente, que procurava humilhá-lo, fora ferido. Reagira à prisão. Toda esta perseguição só podia atribuir às suas atitudes políticas. Estava contra o governo.

Era correligionário da candidatura de Rego Barros. Pois ficasse o governo certo de que não havia força humana que o arredasse do seu caminho. Ele e todo o eleitorado iriam às urnas para salvar a Paraíba dos oligarcas. A resposta de Vitorino foi lida no Pilar, como mais uma do velho. Mas pelo estado correu a notícia da violência. Os jornais de Recife falaram no caso. Um homem de bem, um proprietário na Paraíba fora agredido pela força pública porque se mantinha contra a situação. Era tudo o que Vitorino queria na vida. Voltaria assim da capital como um chefe. Agora falava por cima dos ombros. O coronel Rego Barros passara-lhe um telegrama do Rio com palavras de aplausos à sua atitude corajosa. Seria recompensado com a vitória da causa. Pelos seus cálculos o município era todo seu”.

Na conclusão da obra o tenente do exército, cercando o bando de Antonio Silvino, acaba prendendo e torturando o mestre José Amaro e é ai que entra a figura do capitão Votorino que enfrenta o Tenente, mas é preso. Sem saída, o mestre José Amaro suicida-se com uma faca de solar, é o capitão Vitorino quem cuida do defunto. Também é ele quem vê, ao final da obra, o engenho Santa Rosa soltando fumaça e a chaminé do Santa Fé com flores cobrindo a boca suja, O engenho estava de “fogo morto”, ou seja, não produzia mais.
Essa terceira parte também representa a decadência e esperança do fim do ciclo da cana de açúcar e até dessa fase do capitalismo em contrapartida de uma produção latifunduiária com mãio de obra escrava, uma crítica a essa organização econômica e social baseada no engenho.

Através dos três personagens principais José Lins do Rego nos apresenta diferentes reações às mudanças, que levam a diferentes destinos. Tanto o Mestre Amaro e o coronel Lula de Holanda não progrediram, pararam no tempo e não viram as mudanças ficando a margem desse mundo em transformação. Vemos a visão do início da industrialização que começa a chegar com as usinas. A aristocracia rural pode seu poder econômico e político, antes absolutos. Apenas o capitão Vitorino parece reagir às mudanças de forma positiva luta para modificar velhas estruturas porque quer construir uma sociedade melhor, mais justa. Apesar de sua ingenuidade, insere no desfecho do romance um toque de esperança.
Site de referência:

Filme: Fogo Morto (1976). Direção: Marcos Farias. Baseado no romance Fogo Morto, de José Lins do Rego, adaptado por Marcos Farias e Salim Miguel o filme retrata os costumes da sociedade do século XX,1910, em pleno período de decadência da aristocracia canavieira do nordeste do Brasil. Situado no estado da Paraíba mostra dramaticamente a decadência de uma organização econômica e social baseada no engenho. Vários personagens compõem o enredo, destacando-se: Mestre Amaro, artesão que resiste as margens do engenho e é despejado e não aceita as mudanças com a chegada da industrialização, mantendo a manufatura.

O coronel Lula de Holanda, que perderá seu poder político e econômico por não saber lidar com os seus escravos, tratando-os como animais. .Apenas o capitão Vitorino parece reagir às mudanças de forma positiva luta para modificar velhas estruturas porque quer construir uma sociedade melhor, mais justa. Apesar de sua ingenuidade, insere um toque de humor e leveza ao filme. Nomes de peso como Othon Bastos, Joffre Soares, Angela Leal e Rodiolfo Arena com interpretações sublimes fazem uma homenagem com esse filme ao imortal romance de José Lins do Rêgo. Nota 10.
Fonte: Adorocinema.com.
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