Laranja Mecânica
- Fernando Carlos
- 3 de ago. de 2019
- 10 min de leitura

Confesso que o filme de Stanley Kubrick (A Clockwork Orange) é muito mais conhecido que essa obra, mas é justamente por isso que vamos discutir a obra original de Anthony Burgess, escrita em 1962, isto é, 10 anos antes do lançamento do filme Laranja mecânica. O autor é britânico e temos uma versão dessa obra nos EUA em que o ultimo capítulo foi excluído, portanto o filme se baseia nessa segunda versão, sem o ultimo capítulo.
A obra se situa num futuro próximo, mas um futuro pessimista e, portanto é uma distopia. Devido aos avanços das ciências e tecnologias, o autor faz uma crítica social, focando na juventude ociosa e uma crítica política focando nos métodos de controle do Estado com uso de alta tecnologia para manipulação de comportamentos. Em 1962 estávamos vivendo a guerra fria entre os EUA, grande potência democrática e URSS a gigante ditadura socialista que ameaçava a democracia com sua ideologia marxista/Stalinista de expandir a revolução para outros países.

A revolução comunista mais contundente foi a liderada por Fidel Castro em Cuba, que se tornou-se socialista em 1959, 4 anos antes da publicação do livro. Antes dela se tornar uma ditadura nas mãos de Castro, Cuba era um país que vivia sob forte influência dos Estados Unidos, diziam que era o quintal dos americanos, pois muitos hotéis eram dominados por grandes empresários norte-americanos, tendo os Estados Unidos total influenciavam na política da ilha, apoiando os presidentes pró-Estados Unidos. Com o sistema capitalista na ilha existiam grandes desigualdades sociais, grande parte da população vivia na pobreza, gerando muita insatisfação nas camadas mais pobres da sociedade cubana, que era a maioria. Seguiu-se a revolução Chinesa aconteceu entre 1949 e 1962 (ano do lançamento do livro), e foi um dos maiores acontecimentos históricos. A Revolução se deu por pela luta dos camponeses por terras e independência nacional, que na época, os comunistas assumiam o poder, tendo Mao Tsé Tung como líder e depois ditador com uma China socialista arrasada pelos longos anos em que batalhou contra o domínio japonês.

Depois veio a guerra no Vietnã. A história da entrada dos EUA na Guerra tem como motivação a tentativa de se implantar o comunismo nesse país, já que a expansão da Rússia estava tendo sucesso absoluto, o mundo estava se tornando socialista. O Vietnã era dominado pela França, por ser sua colônia e se chamava Indochina e sofria dominação de outros países estrangeiros. Espelhados na URSS e na recém formada China comunista, começam as guerrilhas contra a dominação estrangeira, mas tínhamos uma divisão entre o povo do Vietnã: O Sul, cuja capital era Saigon defendia o comunismo e era liderado por Ngo Dinh Diem e o Norte, que tinha como capital Hanoi desejava eleições gerais para um processo de reunificação em 1956. Porém isso não se concretizou. Sucessivas crises levaram ao adiamento da questão e ao agravamento do conflito. Em 1955, Ngo Dinh Diem, do Vietnã do Sul, dá um golpe e toma o poder no país, proclama a independência do Vietnã do Sul e governa o país com mão de ferro apoiado pelos Estados Unidos, contra o avanço do comunismo na Indochina. Nessa ocasião, os EUA mandam armas, ajuda financeira e treinamento militar ao Vietnã do Sul. O Norte busca aliados comunistas, a URSS e a China e a guerra tem início de fato. A Guerra do Vietnã, foi um dos mais violentos importantes e simbólicos conflitos do século XX. Uma guerra que foi marcada pela violência dos bombardeios, pelo uso das armas químicas, por novas tecnologias militares, como a Napalm e o helicóptero.

Esse é o contexto da violência gerada pela guerra ideológica, mas na década de 50 tivemos os avanços nas técnicas de controle e mudança de comportamentos humano pela psicologia comportamental e o impacto que tal advento trouxe aos receios de tal método. Certamente o livro Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley escrito em 1931 sobre um mundo distópico que tem semelhanças e grande influência para essa obra, mas Huxley faz uma crítica ao regime socialista e Laranja Mecânica ao capitalismo dos EUA, mas ambos abordam esse tipo de manipulação comportamental. Essa técnica de manipulação do comportamento humano teve como base a modificação do comportamento em animais, que excluía a investigação da subjetividade humana, em detrimento da intervenção junto a pensamentos e sentimentos no ser humano. Na década de 50 já se pensava em usar largamente nos seres humanos, fato esse que aconteceu somente a partir da década de 70, justamente no lançamento do filme de Kubrick em 1972. Durante a década de 70 temos uma maior preocupação dos analistas do comportamento em responder às frequentes criticas dos terapeutas cognitivo-comportamentais na manipulação do comportamento humano por tais tecnicas.

Não somente esse livro temos críticas severas as técnicas da manipulação do comportamento por técnicas da psicologia, mas desde o seu surgimento do chamado Behaviorismo até os dias atuais são criticadas, o que não constitui um problema. Toda teoria pode e deve ser criticada. B. F. Skinner ficou mundialmente conhecido por suas pesquisas envolvendo o conceito de condicionamento operante. É o criador da linha de behaviorismo (comportamentalismo) conhecida como behaviorismo radical, disse que muitas críticas se devem a mal entendidos. Vejamos as críticas e as respostas dadas à elas:

Os humanos têm vontade própria assim, suas ações não podem ser previstas ou controladas, ou seja, pode escolher se faz ou não faz alguma coisa, pode escolher comportar-se deste modo ou daquele. Uma ciência do comportamento seria indesejável por poder ser usada para oprimir as pessoas e isso não é ético. Toda ciência têm uma ética por trás de sua base filosófica e com isso, pode ditar uma verdade diferente do agir eticamente. Não existe conhecimento científico neutro, pois o mesmo é construído em uma cultura e de acordo a interesses políticos.

A ciência do comportamento é fatalista, isto é, podemos prever o comportamento previamente desejado por quem manipula o sujeito (cobaia). Se você estabelece uma meta de que comportamento deseja, se tem uma probabilidade de prever, descrever e controlar esse comportamento não se foge muito do fatalismo. O fato é que a maior parte das vezes se consegue mudar o comportamento futuro errando pouco. Ainda sim estaria fadado a um destino que ocasionalmente varia. Temos ainda a possibilidade de um cientista comportamental ampliar o repertório comportamental, uma vez que a teoria não apresenta sua postura ética e o próprio behaviorista tem seu comportamento modelado pelas contingências, nada impede o behaviorista de utilizar seu conhecimento para extrair o máximo de proveito do paciente (cobaia).

Partindo desses argumentos e críticas, o autor Anthony Burgess nos coloca num mundo distópico bastante incômodo e carrega a história de situações bastante indigesta. Situado na sociedade inglesa de um futuro próximo, que tem uma cultura de extrema violência juvenil, representada aqui por um anti-herói Alex, que faz a narração em primeira pessoa sobre suas façanhas violentas e suas futuras experiências com as autoridades estaduais e, portanto, o autor coloca muita gíria influenciada pelo russo e inglês que ele inventou essa linguagem chamada “Nadsar,” o que é uma tortura para ter a obra, já que temos sempre que consultar um glossário existente. É uma sátira à sociedade inglesa. No livro, o sobrenome de Alex em momento algum é revelado. Comenta-se que DeLarge seja uma referência a um momento no livro em que Alex chama a si mesmo de "Alexander the Large".
O romance foi inspirado em um fato real ocorrido em 1944: o estupro, por quatro soldados americanos, da primeira mulher do autor, Lynne. Inicia apresentando um grupo de adolescentes bastante cultos e eruditos, mas sem objetivo na vida, sem uma meta e bastante ociosos. Eles curtem arte e um deles, o Alex gosta de música erudita e seu compositor favorido Beethovem.

Alex faz referência ao grego arcaico, pois Lex seria lei e o “a” seria sem, portanto seu nome já nos induz a uma pessoa fora da lei. Ele é o líder do bando de delinquentes (seus amigos são chamados de "drugues"), mas o autor demonstra que não são adolescentes que não tem cultura, não tem nada na cabeça, pelo contrário, suas idéias é que são atrapalhadas e aqui ele coloca como culpa uma bebida misturada com leite e um ácido alucinógeno que eles tomam para depois praticarem a ultra-violência. Esse termo ultra violência não é qualquer violência, mas sim algo bastante cruel que choca o leitor, estamos falando de violência desumana ou além do imaginável, como estupro de crianças, agressões com requintes de crueldade, espancamento até a morte de indigentes e tudo num mundo avançado, com alta tecnologia, o que seria um futuro próximo.

Existe o combate a crimes, não a esse, mas existe uma repressão pela Inteligência governamental que deseja fazer uma experimentação científica inovadora e, portanto, terá que ser com a escória da sociedade e, portanto eles buscam prender o líder da gang e por traição dos membros do grupo, a polícia consegue chegar ao Alex e prendê-lo. Ele ironiza.
Ele é condenado a 14 anos de prisão e preso, mas fica sabendo que pode optar por um tipo de tratamento, que com algumas sessões, ele estaria reabilitando e aceita prontamente e passa por um experimento de lavagem cerebral chamado de Ludovico, criado pelo Estado e destinado a refrear os impulsos destrutivos dos delinquentes. Quem assistiu ao filme deve se lembrar das cenas que mostram exatamente como se dá o processo.

Uma das mais chocantes é quando eles prendem Alex numa cadeira e grampeiam as pálpebras para que ele tenha que assistir cenas de ultra-violência sem piscar os olhos. No filme os mostram pingando colírios no decorrer da sessão, coisa que não é descrito no livro. Ele é obrigado a assistir cenas de ultra violência, cenas da segunda guerra mundial e tudo aquilo que ele já praticava sexo violento, violência contra crianças, contra animais... enfim, nem vou continuar descrevendo pois pouparei o leitor. Para piorar sua situação, já que é um método de terapia de aversão em que Alex recebe uma injeção que o faz se sentir mal enquanto assiste a tais filmes, eles colocaram ao mesmo tempo a trilha sonora das músicas que ele mais gosta, Beethoven, já que ele tinha bom gosto e sabia curtir artes em geral. A idéia era que ele fosse condicionado a sofrer crises incapacitantes de náuseas com a simples ideia de violência. Como consequência não intencional, a trilha sonora dos filmes passou a ser insuportável. Alex torna-se incapaz de reagir a qualquer agressão ou fazê-la.

A eficácia do tratamento é demonstrada a um grupo de doutores, que assistem como Alex desmaia antes de um valentão ridicularizá-lo, e humilha-se diante de uma jovem mulher com pouca roupa, sendo que ele antes a estupraria, ele fica impotente sexual. Embora o capelão da prisão acusa o Estado de retirar Alex do livre-arbítrio, os funcionários do governo na cena estão satisfeitos com os resultados e Alex é liberado para a sociedade no início como um resultado.

Ele não pode voltar para a casa de seus pais, pois alugaram seu quarto para um inquilino. Ele vagueia pelas ruas como um sem-teto e pensa em suicídio. Vai encontrar uma das suas vítimas do início do livro e, com a ajuda de seus amigos, o agride. Depois o reencontro com Tosko e Billyboy, seu ex-rival de gangue que agora são policiais. Eles tiram Alex fora da cidade e o espancam. Daí para frente é ele a vitima e sofre todos os tipos de agressão até que ele encontra um escritor que é um crítico do governo e pretende usar a terapia de Alex como um símbolo da brutalidade do Estado para evitar que o atual governo seja reeleito, mas um membro dos opositores desmascara quem foi Alex e o submete a obriga-o a escutar música clássica, levando-o a tentar o suicídio pulando de uma janela alta, depois é internado em um hospital cortejado por oficiais do governo ansiosos para combater a má publicidade criada por sua tentativa de suicídio.Eles viram o erro do tratamento Ludovico e fazem a reversão. Ele fala: "Eu estava curado mesmo".

No capítulo final, Alex se encontra preparando-se para mais uma noite de crime com um novo trio de drugues, mas sentindo cada vez menos prazer em atos de violência sem sentido. Ele começa a pensar em desistir do crime para se tornar um membro produtivo da sociedade e começar uma família própria, ao refletir sobre a noção de que seus filhos serão tão destrutivos - se não mais - do que ele próprio.

O título Laranja Mecânica nos remete a teoria de David Émile Durkheim (1858 —1917) foi um sociólogo, antropólogo, cientista político, psicólogo social em sua obra “De la Division du Travail Social”, que buscou esclarecer que a existência de uma sociedade, bem como a própria coesão social. Para Durkheim existem dois tipos de solidariedade: a mecânica e a orgânica. A mecânica seriam as sociedades ditas “primitivas” ou “arcaicas”, ou seja, em agrupamentos humanos de tipo tribal formado por clãs. Nestas sociedades, os indivíduos que a integram compartilham das mesmas noções e valores sociais tanto no que se refere às crenças religiosas como em relação aos interesses materiais necessários a subsistência do grupo. São justamente essa correspondência de valores que irão assegurar a coesão social.

Assim como um relógio (daí clockwork do título original) elas funcionam da mesma forma, com o mesmo ritmo, em conjuntos e com a mesma função, que seria a proposta do experimento Ludoviko, todos passariam por uma lavagem cerebral para ter comportamentos iguais. De modo distinto, existe a solidariedade orgânica que é a do tipo que predomina nas sociedades ditas “modernas” ou”complexas” com maior diferenciação individual e social (o conceito deve ser aplicado às sociedades capitalistas). Além de não compartilharem dos mesmos valores e crenças sociais, os interesses individuais são bastante distintos e a consciência de cada indivíduo é mais acentuada. Aqui teremos as diversidades como algo normal e aceitável.

Dessa forma, a laranja é algo orgânica, que não existem duas iguais, mas se colocarmos dentro um artefato mecâncio (no caso, o cérebro ser defionido mecanicamente como algo imutável e igual) a laranja não apodrecerá. O que você prefere ser uma laranja mecânica e viver socialmente com os mesmo pensamentos e comportamentos como todos ou uma laranja orgânica e apodrecer?

Finalmente o capítulo 21. O capítulo 21 foi omitido das edições publicadas nos EUA antes de 1986. Burgess explica que quando trouxe pela primeira vez o livro para uma editora estadunidense, ele foi informado de que o público dos EUA nunca iria gostar do capítulo final, com Alex sucumbindo à sua natureza violenta e imprudente, um final que o editor insistiu que seria "mais realista" e atraente para o público dos EUA.
Filme.
Laranja Mecânica (1972) Direção de Stanley Kubrick. Sinópse: No futuro, o violento Alex (Malcolm McDowell), líder de uma gangue de delinquentes que matam, roubam e estupram, cai nas mãos da polícia. Preso, ele recebe a opção de participar em um programa que pode reduzir o seu tempo na cadeia. Alex vira cobaia de experimentos destinados a refrear os impulsos destrutivos do ser humano, mas acaba se tornando impotente para lidar com a violência que o cerca.

A adaptação do filme, dirigida por Stanley Kubrick baseia-se na edição estadunidense do livro. Burgess considerou essa versão "gravemente defeituosa", pois Kubrick amenizou muito as cenas de violência e deu uma estética teatral para o filme, como forma de ser mais comercializado e menos repugnante. Kubrick chamou o Capítulo 21 de "um capítulo extra" e afirmou que ele não tinha lido a versão original, até que ele tinha praticamente terminado o roteiro, e que ele nunca tinha dado a considerar seriamente a usá-lo. Na opinião de Kubrick, o capítulo final foi inconvincente e inconsistente com o livro.

Prêmios
OSCAR 1972 Indicações Melhor Filme Melhor Diretor - Stanley Kubrick Melhor Roteiro Adaptado Melhor Edição
GLOBO DE OURO 1972 Indicações Melhor Filme - Drama Melhor Diretor - Stanley Kubrick Melhor Ator - Drama - Malcolm McDowell
Em 2005, Laranja Mecânica foi incluído na lista da revista Time dos 100 melhores romances anglófonos escritos desde 1923, e foi nomeado pela editora Modern Library e seus leitores um dos 100 melhores romances anglófonos do século 20.
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